sábado, 9 de abril de 2011

Um tipo estranho

Minhas aulas de Escrita Criativa estão indo de “vento em popa”. Cada semana estudamos um novo tópico e tenho ficado maravilhada com as possibilidades da literatura e da língua portuguesa.
Como não poderia deixar de ser estou postando meu terceiro tema de casa, que agora são quinzenais e este é mais ou menos assim. Cada colega criou um personagem completando os itens que seguem: nome, origem, época, profissão, idade, 3 hábitos , 1 mania, características físicas, características psicológicas, 1 doença, 1 ideal e como é a família. Nosso tema é escolher qualquer personagem do grupo, menos o próprio, e desenvolver um texto entre 30/40 linhas, usando alguns neologismos criados em sala de aula. Usei as palavras gasteira, megabelo, despalhaço, transtrama, meigosamente, présonho, corredoroso, inspirados na técnica de Guimarães Rosa, que criou uma linguagem muito particular. “Grande Sertão Veredas” está na minha lista de leituras obrigatórias para 2011.
Meu escolhido foi Felipe, personagem criado pela colega Bianca.
A escolha por este personagem tem a ver com minha especialização em tratar adolescentes e conhecer seus dilemas e conflitos muito bem. Afinal, já fui adolescente, fui mãe de dois adolescentes, um deles, coincidentemente chamado Felipe. Apenas isso.

Um tipo estranho

O mundo é um lugar estranho para se viver, São Paulo pior ainda. Esta é a impressão que Felipe tem de sua vida e de sua cidade: estranheza. Sua mãe passa os dias gastando o dinheiro que seu pai ganha de sol a sol. Enquanto seu pai quase não o vê, sua mãe finge que ele não existe. Seu pai está sempre viajando ou em reuniões de negócios, e sua mãe - uma perua gasteira assumida – vive nos shoppings e salões de beleza, numa busca desenfreada por novidades e beleza. Mais adequado seria dizer em busca de ocupação e sentido para uma vida frustrada e vazia. Olhando para eles, Felipe sente-se um ET. Gostaria de ser megabelo, agradaria assim sua mãe e certamente suas colegas de turma, que nem reparam que ele existe. Mas, de uma forma que ele não compreende, ao invés de ficar bonito como seus pais, está cada dia mais estranho, para não dizer, mais feio. Diferentemente de seus colegas, que dia a dia aparecem mais altos em sala de aula, ele continua roliço como os meninos de sua geração, que vivem plugados na internet, sem atividade física e abastecidos com uma dose diária de Big Mac. Para piorar, seu problema de miopia o obriga a usar óculos de lentes grossas, tipo fundo de garrafa. O oftalmologista proibiu que usasse lentes de contato, pois como está em fase de crescimento, elas poderiam complicar seu quadro – já difícil - tornando-se irreversível e complicando uma futura cirurgia. Por isso, escolheu viver do seu jeito e com suas imperfeições. Adotou um visual heavy metal, que valoriza seu biótipo. Inovou seu visual, e ao invés de usar botas grossas e pesadas, prefere os tênis All Star surrados, rasgados e completamente deformados. Pode não ser um adolescente bonito, mas Felipe é estiloso. De todos os apelidos que tem na escola o único que verdadeiramente o incomoda é “Nhonho”, pois associa gordura à idiotice. O que é uma ofensa a seu QI. Sabe que é o mais inteligente da 6ª série, pois pouco estuda e normalmente é o primeiro da turma. Nerd, CDF são apelidos que ele gosta, mas não demonstra, pois contrastam com seu visual macabro, e dão orgulho a seu pai que deixa claro o quanto desempenho e resultado são importantes. Ou seja, suas notas. Já sua mãe, pouco valoriza seu desempenho e revira os olhos sempre que o vê fantasiado de ninja – como ela define seu visual dark – e não esconde a decepção e frustração de ter um filho, que a seu ver, é um completo desajustado. Ela mal desconfia que por trás das camadas de gordura, roupas pretas, correntes e pulseiras de metal, existe um menino meigosamente inseguro, carente e deslocado. Suas unhas roídas e a asma persistente denunciam seu lado frágil e confuso, que sua mãe prefere não ver. Invés disso, ela acredita que seu único filho é assim apenas para confrontá-la e agredi-la. Bem que Felipe gostaria de ser bonito como os outros meninos, mas ainda não é. E espera sinceramente, um dia ser. Mas enquanto está nesta fase que alguns chamam de puberdade, outros de pré-adolescência ou aborrecência, decidiu que seria ele mesmo com suas idéias sobre a vida, a cultura, a estética e as pessoas. Decidiu ser um despalhaço. Sim, porque seus pais, seus colegas “mauricinhos e patricinhas” são palhaços manipulados por uma sociedade capitalista e consumista, um transtrama do qual ele resolveu não participar , sequer fazer parte.
E ser do jeito que é, foi o jeito que encontrou para se sentir alguém no meio de milhões de ninguéns. Ele sabe que para um dia ser valorizado dentro desta sociedade palhaça, precisa fazer algo que o catapultará a outra categoria de ser humano. Se pudesse passar mais horas em frente ao vídeo game com certeza seu futuro estaria garantido, mas sua tata tem ordens expressas de vigiar de perto sua obsessão pelos jogos – “Lipinho, é por causa dos seus olhos” – ela argumenta toda vez que desliga a energia geral da casa. Mas no dia em que criar o melhor de todos os jogos de vídeo game de todos os tempos e ficar milionário, tudo será diferente: suas colegas, ou melhor, todas as mulheres do planeta o disputarão à tapa, sua gagueira corredorosa desaparecerá instantaneamente, seus pais enfim, se orgulharão dele. E ele, poderá se fantasiar de mauricinho sem se sentir um palhaço.
Mas enquanto isto não acontece, Felipe vai continuar escutando a Banda Muse ininterruptamente, jogar as três horas permitidas de vídeo game todos os dias, roer as unhas até seus dedos sangrarem e comer um Big Mac Duplo, na certeza de que seu présonho, um dia será sua realidade.

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